O
GOSTO AMARGO DA LEMBRANÇA
A música que escutei
certa vez é do tipo que faz um estrago logo na primeira audição e
pode tomar simultaneamente duas direções distintas. Um encantamento
e repulsa.
Não sei quando
ocorreu a gravação e, pelo visto, ninguém a cantou ou falou a
respeito, dizem até que na época ninguém a ouviu. A propósito,
quem se interessaria por uma música que fala de um sonho que teimava
em se repetir todas as noites.
Através do sonho,
ela o visitava todas as noites, fazia-lhe caricias, beijava-o,
brincava e dizia reiteradamente que lhe pertencia. Os anos foram
passando, passando, até que ele passou a amá-la e a cultuar tudo
que lhe dizia a respeito, chegando ao inacreditável de aprender, de
forma fluente, a estranha língua que ela falava.
Certa vez, ainda
pequeno, voltando para casa escutei a música tocando em um estranho
bar, uma casa noturna que passou despercebida na cidade e que
abrigava sob o mesmo teto e sem regalias, tudo que existia na noite
mundana, playboys, travestis, poetas, prostitutas, bêbados e outros
habitués de cores diversas.
Foi nesse ninho de
arte e tensa tolerância que escutei a música e, naquela ocasião,
mesmo de passagem, observei que todos foram acometidos por um
silêncio sufocante, alternado por poucos aplausos e gargalhadas
exasperadas.
Embora a música
pertença ao mundo, não sei quem a gravou ou compôs, só sei que
tem uma história tão fascinante quanto ao lugar em que foi tocada,
pois na calçada do dito estabelecimento tinha uma arvore que dava
uns frutos que ninguém conhecia e que após a sua retirada a espécie
foi extinta sem que ao mesmo um pesquisador ou botânico a
registrasse.