quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Eu sou um livro aberto sem história....


                   Aquele foi o primeiro e único amor do moço velho, tanto que ele não conseguiu sentir algo por mais ninguém no mesmo calibre, na mesma intensidade e findou passando o resto da vida em função desta ausência, pois não teve mais tempo para aprender outros prazeres, outros interesses, outra vida.
                   Ela, por sua vez, sentia por aquele bandido, apenas certa simpatia e uma leve atração que se misturavam a outros sentimentos que sobravam lá pelas beirada da alma.
                   O que ele pensava que era amor, ficou por uns tempos preservado em sua essência, tanto que dito sentimento sobreviveu a tudo, as pressões, as resistências, aos argumentos, ao fim, a partida, as razões, as conseqüências, aos fatos, mas não teve força para sobreviver a indiferença,  ao desinteresse e a distância.
                   Quando o amor deixa de existir, tudo que ele designa como os objetos, costumes, palavras, cheiros, sensações, lembranças, afetos vão para o limbo e se acaba. Junto com o principal, todo o entorno se evapora como se não tivesse existido.
                   Com o tempo, o moço velho passou a freqüentar apenas um café e as pessoas do local diziam que ele era rabugento, pois não falava com ninguém, ignorava o mundo e tudo o aborrecia. Ele passava horas sentando a mesa e tinha o hábito de escrever em sua Moleskine. Parecia perdido, estranho. Em uma manhã de maio, sol escaldante, ele freqüentou o café como de costume e, quando partiu, nunca mais foi visto.
                   Alguém, por certo, vendo a mesa vazia deve ter notado a ausência e concluído “pode ter sido uma escolha”.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Rubem Alves, nossa eterna referência


O JARDINEIRO E A FRAULEIN

Menino, ele de longe olhava os pescadores nos seus barcos levados pelo vento. Pensava que o mar não tem fim. Pensava que os pescadores eram felizes porque não precisavam plantar peixes para colher depois. O mar era generoso: ele mesmo plantava os peixes que os pescadores só faziam colher com as suas redes. Tinha inveja dos pescadores. Ele era filho de agricultores. Tinha de plantar para colher. Diferente do mar, a terra tinha fim. Todos os pedaços de terra, os menores, os mais insignificantes, todos já estavam sendo cultivados. Os pescadores, se quisessem mais, bastava-lhes navegar mar a dentro. Mas os agricultores não podiam querer mais. A terra chegara ao fim. Quem quisesse mais terra para cultivar teria que sair da terra conhecida e ir em busca de outras terras, além do mar sem fim.

Ele já ouvira os mais velhos falando sobre isso - um país do outro lado do mar - tão longe que lá era noite quando no seu país era dia - país de gente de rostos diferentes, de comida diferente, de língua diferente, de religião diferente, de costumes diferentes. Tudo era diferente. Menos uma coisa: a terra era a mesma e os seus segredos, eles os conheciam.

E foi assim que chegou o dia em que ele, adolescente, seus irmãos e seus pais, entraram num navio que os levaria ao tal país como era mesmo o seu nome? Buragiro... Era assim que eles, japoneses, conseguiam falar o nome Brasil...

No Brasil, o jovem japonês conseguiu trabalho na casa de uma família de alemães. Família rica, casa de muitos criados e criadas. Ele não falava português nem alemão. Mas não importava. Seu trabalho era cuidar da horta e do jardim. E a língua da terra e das plantas ele conhecia muito bem. A prova disso estava nos arbustos artisticamente podados segundo a inspiração milenar das bonsais, nos canteiros explodindo em flores, nas hortaliças que cresciam viçosas. E foi assim que, na sua fiel e silenciosa competência de jardineiro e hortelão, ele passou a ser amado pelos seus patrões.

Mas ninguém nem de longe suspeitava os sonhos que havia na alma do jardineiro. Quem não sabe pensa que jardineiro só sonha com terra, água e plantas. Mas os jardineiros têm também sonhos de amor. Jardins, sem amor, são belos e tristes. Mas quando o amor floresce o jardim fica perfumado e alegre. Pois esse era o segredo que morava na alma do jardineiro japonês: ele amava uma mulher, uma alemãzinha, serviçal também, todos a tratavam por Fräulein. Cabelos cor de cobre, como ele nunca havia visto no seu país, pele branca salpicada de pintas, olhos azuis, e um discreto sorriso na sua boca carnuda que se transformava em risada, quando longe dos patrões. Era ela que lhe trazia o prato de comida, sempre com aquele sorriso...

E ele sonhava. Sonhava que suas mãos acariciavam seus cabelos e seu rosto. Sonhava que seus braços a abraçavam e os braços dela o abraçavam. Sonhava que sua boca e sua língua bebiam amor naquela boca carnuda... E a sua imaginação fazia aquilo que faz a imaginação dos apaixonados: se imaginava num ritual de amor, delicado como a cerimônia do chá, tirando a roupa da Fräulein e beijando a sua pele... A imaginação de um jardineiro japonês apaixonado é igual à imaginação de todos os apaixonados...

Mas era apenas um sonho. Olhava para seu corpo atarracado, para sua roupa rude de jardineiro, para suas mãos sujas de terra, para seus dedos ásperos como pedras. A Fräulein pertencia a um outro mundo distante do seu mundo de jardineiro.

Vez por outra ele lhe oferecia uma flor quando ela lhe trazia a comida. Ela sorria aquele sorriso lindo de criança, agradecia, e voltava saltitando para a casa, com a flor na mão. Mas havia aquelas ocasiões em que ela tomava a flor e a levava ao seu nariz sardento para sentir o perfume. As pétalas da flor então roçavam os seus lábios. E o seu corpo de jardineiro estremecia, imaginando que a sua boca estava tocando os lábios dela.

Mas o seu amor nunca saiu da fantasia. Ninguém nunca soube.

Os anos passaram. Ele ficou velho. A Fräulein também envelheceu. Mas o amor não diminuiu. Para ele, era como se os anos não tivessem passado. Ela continuava a ser a meninota sardenta. O amor não satisfeito ignora a passagem do tempo. É eterno.

 
Chegou, finalmente, o momento inevitável: velho, ele não mais conseguia dar conta do seu trabalho. Seus patrões, que o amavam profundamente, pensaram que o melhor, talvez, fosse que ele passasse seus últimos anos num lar para japoneses idosos, uma grande área de 10 alqueires, bem cultivada, com pássaros, flores e um lago com carpas e tilápias. Ele concordou.
Visitou o lar mas, por razões desconhecidas, não quis viver lá. Achou preferível viver com parentes, numa cidade do interior. Mas o fato é que os velhos são sempre uma perturbação na vida dos mais novos. São, na melhor das hipóteses, tolerados. E a sua velhice se encheu de tristeza.

Um dia, movido pela saudade, resolveu visitar a casa onde passara toda a sua vida e onde vivia a Fräulein. Mas aí lhe contaram que ela fora internada num lar para idosos alemães. Estava muito doente. Foi então visitá-la. Encontrou-a numa cama, muito fraca, incapaz de andar.

E então ele fez uma coisa louca que somente um apaixonado pode fazer: resolveu ficar com ela. Passou a dormir ao seu lado, no chão. Passou a cuidar dela como se cuida de uma criança. (Fico comovido pensando na sensibilidade dos diretores daquela casa que permitiram esse arranjo que não estava previsto nos regulamentos.)

A Fräulein estava muito fraca. Não conseguia mastigar os alimentos. Não conseguia comer. Aconteceu, então, um ato inacreditável de amor que os que não estão apaixonados jamais compreenderão: o jardineiro passou a mastigar a comida que ele então colocava na boca da agora ‘sua’ Fräulein. Os dirigentes da casa, acho que movidos pelo amor, fizeram de conta que nada viam.

Nunca ninguém viu, nunca ninguém me contou. Imaginei. Imaginei que quando estavam sozinhos, sem ninguém que os visse o jardineiro encostava seus lábios nos lábios da Fräulein, e assim lhe dava de comer... Assim o fazem os namorados apaixonados, lábios colados, brincando de passar a uva de uma boca para a outra...

E assim, ao final da vida, o jardineiro Hiroshi Okumura beijou sua Fräulein como nunca imaginara beijar... O amor se realiza de formas inesperadas.

Esta é uma história verdadeira. Aconteceu. Foi-me contada pela Tomiko, amiga que trabalha com idosos (aquela que me aconselhou a comprar um blazer vermelho). Ela conheceu pessoalmente o jardineiro.

No meu sítio eu planto árvores para meus amigos que morrem. Pois vou plantar uma cerejeira e uma camélia vermelha, uma ao lado da outra: o Jardineiro japonês e a sua Fräulein...
(Correio Popular, Caderno C, 07/01/2001)
 

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A ternura, até então desconhecida, de Marina Silva ao comentar a despedida de Rubem Alves da Folha de São Paulo



ALÉM DO COTIDIANO
 


A partir de agora, os leitores de Rubem Alves não terão mais os litorais inundados pelas intensas ondas de suas ideias, avolumadas pelos ventos de sua alma de poeta.

Sua afirmação "minha alma é movida pelas ausências" revela em carregadas tintas o que quase sempre fazemos questão de velar: que nos movemos mais pelo que nos falta do que pelo que possuímos.

Só os que se percebem incompletos autorizam-se a parar antes de serem parados, a mudar antes de serem mudados, a revelar suas ausências antes de serem delatados pelas interrogações da presença.

Há muitos anos guardo, do educador Rubem Alves, a lição da incompletude humana da qual só o amor nos redime. E educação é um outro nome da palavra amor.

Do filósofo, esforcei-me para reter o pensamento amplo que descortina a história da humanidade, buscando superar a era da informação em busca de uma era da sabedoria. Do cronista, saboreei o café cotidiano, capaz de dar gosto ao dia e à semana.

Mas foi o poeta Rubem Alves que encontrei, mais uma vez, em sua despedida dessas páginas de jornal.

É a ele que respondo, nessa incompleta homenagem com as palavras que extraí -nas linhas e entre elas- de seu texto denso e profundo:


Disseste tudo ao dizer:
Quando a ausência de mim
Fizer presença em meu ser,
Visitarei a mim mesmo,
Para não me afastar de você.
Quando o peso do dever
Em mim soterrar a alma
Entre os escombros da vida,
Quero flutuar qual pluma
Na leve brisa da calma.

Quando o dizer tiver o poder
De revelar o que não quero,
Paro a pluma, guardo a voz,
Me rebelo no silêncio
Para me manter sincero.

Antes da noção do certo
Se revelar um engano,
Saio do cotidiano:
Adentro em outras rotinas,
Noutros mares vou pescar.

Não quero porto seguro,
Só âncora, vela e mar.
Âncora para ser meu porto,

Vela para me levar,
Mar para, no litoral,
As minhas ondas quebra

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Rubem Alves se despede dos seus leitores cativos da Folha de Sâo Paulo


DESPEDIDA


Minha alma é movida pelas ausências;
mas, nos jornais, não há lugar para ressurreições”




ESSA CRÔNICA é uma despedida. Resolvi, por decisão própria, parar de escrever em Cotidiano.

Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria Laselva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição. Nos aeroportos, vou sempre visitar a Laselva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Saio sempre desapontado.

O outro sonho dos escritores é ter seus textos publicados num jornal importante: ser lido por milhares de leitores. O que significa reconhecimento duplo: do jornal que os publica e dos leitores. Isso faz muito bem para o ego. Todo escritor tem uma pitada de narcisismo.


Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas..." E ele se pergunta se "não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas..."


Respondo: Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas, agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.

A obrigação: é isso o que pesa. Quereria ser capaz de viver um poeminha do Fernando Pessoa: "Ah, a frescura na face de não cumprir um dever... Que refúgio o não se poder ter confiança em nós..." Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto -pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto-que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever.

Não é qualquer coisa que se pode publicar num jornal. O próprio nome está dizendo: "jornal", do latim "diurnalis"; de "dies", dia, diurno; o que acontece no dia; diário. O tempo dos jornais é o hoje, as presenças. Mas minha alma é movida pelas ausências: nos jornais, não há lugar para ressurreições.

Acho que aconteceu comigo coisa parecida com o que aconteceu com a Cecília Meireles. Escrevendo sobre ela, Drummond falou o seguinte: "Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito 'uma certa ausência do mundo'"?

Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e os poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com "uma ausência que se demorava". E Rilke se perguntava: "Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?" O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo.

O místico Ângelus Silésius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundos diferentes: "Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem". Jornais são seres do tempo.


Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.

E é por isso vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente...

Rubem Alves
(Texto de despedida de Rubem Alves, publicado na Seção Cotidiano da folha de São Paulo, Edição de 01 de novembro de 2011, uma terça feira)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

ARQUITETURA DE DESPEDIDA

Com a lembrança, encerramos toda a nostalgia que pautou a maioria das publicações do Blog.  Em breve, voltaremos com novos textos, outros temas.

Bachelard observou que “a lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental das lembranças. Senão vejamos: Que sol ou que vento fazia naquele dia de novembro em que ela foi embora ?

Compreendi as palavras de Bachelard ao me lembrar daquele dia terrível, que não pode ser esquecido. Era fim de tarde, quando a luz do dia que se ia  misturava-se com o escuro da noite que chegava e tudo ficou indefinido. A indefinição ficava mais indefinida ainda pela chuva fina que começava a cair. Foi então que aconteceu: uma ligação e estava resolvido. Fiquei inconsolável e assustado, pois não tinha lembrança de qualquer momento parecido com aquele.  

De verdade, minha doce menina, a cada dia que passa renova em mim o orgulho de ter lhe conquistado e de ter lhe servido e não existe nada neste mundo que possa romper este orgulho, daí a lembrança que teima em ficar, mas, a cada dia vai ficando mais distante.

O passado não existe mais, aliás, remanesce apenas as lembranças que, como no filme de Kar Wai Wong, AMOR A FLOR DA PELE, podem apenas ser vistas, nunca tocadas.

Sempre tive a fé, a caridade e a esperança no meu coração, e estas virtudes me ajudou a suportar a miséria, o sofrimento e o meu fracasso.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pois tudo o que ofereço é, meu calor, meu endereço


Amor, Meu Grande Amor

(Ângela RO RO)



Amor, meu grande amor
Não chegue na hora marcada
Assim como as canções
Como as paixões
E as palavras...


Me veja nos seus olhos
Na minha cara lavada
Me venha sem saber
Se sou fogo
Ou se sou água...


Amor, meu grande amor
Me chegue assim
Bem de repente
Sem nome ou sobrenome
Sem sentir
O que não sente...


Pois tudo o que ofereço
É, meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim, até o começo...


Amor, meu grande amor
Só dure o tempo que mereça
E quando me quiser
Que seja de qualquer maneira...


Enquanto me tiver
Que eu seja
O último e o primeiro
E quando eu te encontrar
Meu grande amor
Me reconheça...


Pois tudo que ofereço
É, meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo...

Amor, meu grande amor
Que eu seja
O último e o primeiro
E quando eu te encontrar
Meu grande amor
Por favor, me reconheça...


Pois tudo que ofereço
É, meu calor, meu endereço
A vida do teu filho
Desde o fim até o começo

quarta-feira, 19 de outubro de 2011


I GET A KICK OUT OF YOU ….
(Tenho tesão por você)




Em recente resenha na Folha de São Paulo, Ruy Castro, comenta o livro
LADY BLUE EYES, de Barbara Sinatra, que por 22 anos não apenas falou com Frank Sinatra, mas jantou, dormiu, transou, acordou, tomou café da manhã, assistiu a todos os seus shows e, diariamente escutava ele dizer em seu ouvido "I get a kick out of you..." ["Tenho tesão por você..."]. Demais não ?

É verdade que, para isso, Barbara Blakeley, depois de dois casamentos que não valeram nada, teve de se tornar Barbara Sinatra, o que aconteceu em 1976 e durou até a morte do cantor, em 1998. O resultado dessa convivência está no livro "Lady Blue Eyes - My Life with Frank", sendo o título uma referência a um dos apelidos de Frank, "Old Blue Eyes" (velho olhos azuis). Não é um marco da literatura nem do jornalismo novo ou velho. É uma memória e, como todas as memórias, só recorda o que lhe convém, mas contém revelações que Gay Talese, o biógrafo autorizado de Sinatra, com toda a sua prosopopeia engomada, nunca poderia suspeitar.

O pai de Sinatra, Marty, siciliano, não falava inglês, Sinatra servia-lhe de intérprete, e os dois se adoravam. Em compensação, Sinatra tinha medo da mãe Dolly, que morreu num acidente de avião quando ele tinha 61, que em sua frente voltava a ser o menino de Hoboken que ela espancava dia sim, dia não.

Sinatra gostava de cozinhar e, segundo Barbara, fazia isso muito bem, mas só macarrão, que comia todos os dias. Gostava de trocar receitas de temperos e de cozinhar para as visitas às 4h da manhã. Quando ia a restaurantes de amigos, metia-se pela cozinha e dava palpite no conteúdo das panelas. Estranho, sendo ele italiano, é que detestasse alho. Gostava também de pintar, embora esse fosse um hobby intermitente, não era como Tony Bennett, que fez da pintura sua segunda forma de expressão.

Com todo seu poder, Sinatra não tinha liberdade de movimentos. Ia muito a restaurantes, mas só podia entrar ou sair deles pela porta dos fundos, passando pela cozinha. Quando era hora de ir embora, um ou mais carros o esperava na saída traseira, já com o motor ligado. Garçons e maîtres levavam gordas gorjetas para não avisar a repórteres ou paparazzi que ele estava no recinto.

Segundo Barbara, nunca houve homem mais gentil. Na sua presença, nenhuma mulher acendeu um cigarro, abriu a porta de um carro ou vestiu um casaco sem ajuda. Mas era também um homem que passava uma "sensação de perigo", sujeito a súbitas explosões de violência-, o que, para ela, era um dos componentes de seu inacreditável charme.

Sinatra era grande leitor, diz Barbara: literatura, história dos EUA, política, artes plásticas e biografias. Vivia recomendando livros ou presenteando amigos com eles.

Seu interesse em muitas disciplinas tornava-o um craque em palavras cruzadas, que fazia todo dia, sempre as mais difíceis, e diretamente a tinta.
 
Em sua fortaleza no deserto, em Palm Springs, Sinatra tinha uma coleção de trenzinhos de brinquedo que tomava um quarto inteiro, quilômetros de trilhos atravessando túneis e estações, do chão ao teto, e mais de 200 composições de máquinas e vagões de todos os estilos, origens e épocas, que ele manobrava com controle remoto. Na porta do aposento, uma placa dizia: "Aquele que morre com mais brinquedos ganha".

Sinatra nunca deixou escapar, mas Barbara achava que ele tinha a ambição de ser embaixador dos EUA na Itália. De Franklin Roosevelt a George W. Bush, foi amigo de todos os presidentes americanos, mas nenhum cogitou seu nome para o cargo. Talvez por conta das pessoas estranhas ("homens de cara feia e ternos mal cortados", escreveu Barbara) que às vezes entravam em sua vida e pareciam justificar as acusações de ligações com a máfia.

Fumou a vida inteira (Camel sem filtro) e, dos 30 anos até pouco antes de sua morte, aos 83, pode ter tomado uma garrafa do bourbon Jack Daniel's por dia. Mas não há registro de problemas vocais crônicos em sua história, nem de certos efeitos típicos do alcoolismo. Mesmo seus episódios de violência independiam da quantidade de álcool no tanque. E seis horas de sono bastavam para refazê-lo e deixá-lo pronto para mais um dia.

Sinatra perdeu cabelo muito cedo, e suas perucas eram fabricadas por Joe Paris, peruqueiro de Nova York. Mas nunca as usava em casa, nem mesmo diante de visitas, e não se importava de que amigos o fotografassem sem elas.
Não se permitia ser anunciado ao entrar no palco. "Se até hoje não sabem quem eu sou, não estariam aqui", dizia. O show para 175 mil pessoas no Maracanã, em janeiro de 1980, foi, segundo Barbara, sua apresentação mais inesquecível, e olhe que ele cantou diante da Acrópole (Atenas), do Coliseu (Roma) e da Grande Pirâmide de Gizé (Egito), além de todos os night clubs importantes de EUA, Europa e Japão.

Senhor de todo o cancioneiro americano, o qual, em grande parte, foi estabelecido por ele, Sinatra só cantava "My Way" e "Strangers in the Night" porque o público exigia (achava "muito óbvias" as duas canções). Em suas últimas apresentações, já beirando os 80 (e embora com todo o equipamento vocal em dia), ele se despedia da plateia dizendo: "Obrigado por me deixarem cantar para vocês".

O derradeiro show foi no dia 25 de fevereiro de 1995, no hotel Marriott de Palm Springs, para um concerto beneficente. Morreu três anos depois, em 14 de maio de 1998.

"Lady Blue Eyes" é apenas uma simpática memória afetiva. Barbara consegue escrever quase 400 páginas sem citar as duas filhas de Sinatra, Nancy e Tina, que ele adorava e com quem ela nunca se deu bem, sinal de que nem tudo foram dias de vinho e rosas entre ela e Frank. Ela impediu os podres de aflorar. Mas isso é tarefa para biógrafos, não para viúvas.

domingo, 9 de outubro de 2011

LAGOA SECA

Quando ele era pequeno, a forma mais modesta de consumo de cultura era ficar em casa e assistir à televisão. Todas as outras formas de arte eram refinadas e totalmente fora das condições financeiras daquela família.
Fazer um esforço para sair de casa em direção a um templo de cultura era prova de quem tinha dinheiro e o hábito de engajamento refinado com as artes.
No decorrer do tempo, ele passou a consumir cultura, todavia limitou-se apenas a leitura e a musica, porém continuou cativo a filmes de televisão,  habito que o acompanha desde menino.
Não teve irmão e amigos na infância. Era só ele e a mãe. A única irmã que tinha só veio para o seu convívio por volta dos quinze anos. Morou grande parte da infância no bairro de Lagoa Seca, na Rua São João, que ele por sinal, anonimamente, visita até hoje.
Lagoa Seca é o seu rosebud, nenhuma outra palavra lhe faz sombra e ele confidenciou a ela, apenas a ela, que dita fase da sua vida lhe impôs o que ele é hoje. Nenhuma pessoa intimamente ligada a ele, nem sequer a sua família, tem a mais remota idéia do que Lagoa Seca lhe significa, pois para eles não passa de um bairro e nunca ouviram ele pronunciar tais palavras
Lagoa Seca, além do bairro em que morou, significa  algo que ele perdeu e é esta a razão que o faz passar sempre por lá, ponto central da sua nostalgia pela única época de pureza da vida.
Das pessoas que conheceu, nenhuma lhe restou e os que ainda persistem, podem ser tudo, menos amigos.
Apesar da espiritualidade a flor da pele, não freqüenta igrejas e acredita ter feito um pacto com a mais potente força que existe na natureza que é o Grande Arquiteto do Universo.
Após o relato, a Neófita ficou sem entender porque ele confidenciou apenas a ela, todo o relato sobre sua infância e ele, já incomodado com a sua  curiosidade,  lhe respondeu: Os olhos dela eram mais bonitos que os olhos do imperador Nicolau da Rússia que, apesar de belos os tinha sem vida; Os olhos dela eram mais bonitos que os olhos do imame Chamil, mulçumano do Cáucaso que os tinha pequenos e constantemente entrecerrados num rosto de pedra e Os olhos dela eram mais bonitos  que os olhos do cavalo de Khadji-Murát, conquistador do Cáucaso que eram extraordinariamente magníficos, como cabe aos cavalos dos grandes heróis épicos.

terça-feira, 27 de setembro de 2011


A NEÓFITA

Ele sempre viveu bem. Não teve maiores problemas, a verdade é essa. Mas, cometeu um pecado grave e mortal, valorizou muito a única coisa que deu errado em sua vida. Ele pensou que existia amor em sua cúmplice, o que nunca existiu. Se alguém ouvisse ele falando de como ela foi embora, pensava logo que ele era o homem mais sofrido do mundo e que tinha uma espécie de apego à dor, e que a capacidade de suportá-la até o infinito não passava na verdade de uma espécie de tirania.

Ele tinha um prazer masoquista em repisar aquela ferida, contando e recontando os mínimos detalhes de sua triste história e começava dizendo que o mundo tinha desabado no dia em que, sem mais nem menos, ela lhe telefonou dizendo que não a procurasse mais. Na ocasião, ela foi polida o suficiente para omitir que já estava com outro e que deixou a entender que ele não era o ar que respirava.

Quando ela foi embora, ele se entregou ao seu calvário. Para começar, se sentiu envergonhado. Mas isso era só uma faceta da grande dor que sentia. O pior era ter saudade, que por sinal era tão grande que ele vivia dizendo, em seu imaginário, que era como se ela estivesse ali ao seu lado. Conversava com a saudade e com ela dividia o prazer em apreciar as valsas de Strauss e as sonatas de Chopin, tocadas por Arthur Rubinstein.

Carregou consigo, por muito tempo, como um manto, o luto pela separação. Um luto sem morte, talvez pior, porque a morte é uma dor acabada, uma dor limpa. Viveu em seu calvário por mais algum tempo até o aparecimento da neófita que tinha sido anunciada pelo ATHERZATA na última quinta-feira santa.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011


CRÔNICA DO AMOR


Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.
O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais.
Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.
Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.
Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco.
Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?
Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.
Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo.
Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara?
Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor.
É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.
Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?
Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.
Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó! Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.


domingo, 21 de agosto de 2011


CORAÇÃO MATERNO

No universo sem salvação do amor, a saudade é um país cinzento e cruel que mata aos poucos. Lorde Byron, poeta romântico inglês, filho de um pai predador, e não provedor, carregou desde cedo à carência da alma, pois logo cedo,  ao romper com a mãe caiu em uma solidão profunda que nunca mais o deixou e tal situação findou por lhe impor a terrível condição de solitário e perdido que, por sinal, o acompanhou até o fim da vida, apesar das muitas camas de homens e mulheres que frequentou.

Byron rompeu com a mãe e perdeu o rumo da vida. E se não tivesse rompido, teria se transformado no grande poeta que foi ? Byron rompeu com a mãe, porém a mãe nunca rompeu com ele e apesar da distância, de ter sido totalmente ignorada, findou morrendo de ataque de raiva ao saber das dívidas colossais do filho. Apesar da ausência física, nunca esteve distante do poeta.

Pois bem, aquela mulher, para não desagradar a mãe, impôs um país cinzento e cruel ao seu cúmplice, evitando assim um rompimento com a mesma, mesmo que meramente simbólico, que poderia resultar na mesma solidão que foi imposta pelo destino ao Lorde Byron. O ocorrido desagradou ao cúmplice que fora alvo constante da incompreensão, indignação e desprezo da mãe dela e passou a nutrir um sentimento resumido no mais longe possível.

Certo dia, ele reencontrou a mãe dela, em um café da cidade que ambos freqüentavam,  porém em horários diferentes. Era uma sexta-feira, início de noite. Ela estava humilde, pareceu-lhe menor que antes. Na ocasião ele pensou, nada vai mudá-la, é triste, mas o sentimento do mais longe possível continuava.

Os anos se passaram e ele a reencontrou novamente, no mesmo café, e se era verdade que ela continuava a mesma ele sem dúvida é que mudara, pois de imediato teve a impressão de que tudo que a mãe dela fez no fundo era bem inofensivo e que ele é que tinha cometido o verdadeiro erro de ter dado muita importância as suas insistências para que a filha rompesse aquela relação que a atormentava. A filha findou por  atender ao pedido da mãe. Poderia não ter atendido e, se assim tivesse ocorrido, não tinha passado de um pedido inofensivo e incapaz de ditar o rumo de sua vida.

Na verdade, a filha é o ídolo da mãe que, em troca, exigiu um pequeno pagamento, sua vida. A filha, já crescida, nunca madura o suficiente, já que não passou de filha e a sua vida, aquela com a qual pagou o sacrifício da mãe, foi sendo lentamente cortada pelo destino e assim  permaneceu até a chegada do seu libertador, seu filho.


                                 

-Seja no filme, seja na música, o personagem de Vicente Celestino em CORAÇÃO MATERNO arranca o coração da mãe para atender ao pedido da mulher amada; CORAÇÃO MATERNO também foi gravada por Caetano Veloso. Utilizei no texto, fragmentos do romance A PIANISTA, da escritora austríaca Elfriede Jelinek, Prêmio Nobel de Literatura de 2004; escritos de José Castelo sobre Byron; fragmentos do  O LIVRO DO RISO E DO ESQUECIMENTO, de Milan Kundera, segunda parte MAMÃE, página 33, Editora Nova Fronteira, Edição de 1987 e  conclusões sobre a bailarina reprimida pela mãe no filme CISNE NEGRO.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde *


Em uma pequena digressão sobre o amor, Carson McCullers, autora americana que viveu o amor em todos os seus sentidos, nos oferece uma opinião sobre o tema: há quem ama e quem é amado, e cada uma dessas pessoas sempre vem de mundos, modos e vidas diferentes. Muitas vezes, a pessoa amada é apenas um estímulo para todo amor que, até então, permaneceu guardado em quem ama que, de alguma forma, sabe disso, pois sente em sua alma que o amor é uma coisa solitária e que deve abrigar esse amor dentro de si mesmo, em seu mundo interior e totalmente novo, um mundo por sinal intenso e estranho, completo em si mesmo. Quem ama teima em não deixar esse amor escapar o que faz com que a pessoa amada fique presa, mesmo sem saber.

Em suas obras, Carson McCullers ilustra que as pessoas mais inesperadas podem servir de estímulo ao amor e afirma: “quem é amado, vive um paradoxo, pois teme, odeia e ama quem “o ama” e com toda razão, pois esta pessoa necessita desesperadamente dessa relação, mesmo que dita experiência só lhe cause sofrimento e fique perdida dentro do seu íntimo e é por conta desta prisão que a pessoa amada cultiva a presença de quem o ama sem que ela saiba.

A autora nos apresenta uma perfeita ilustração dessa tragédia humana em sua obra “A Balada do Café Triste”, paródia do amor romântico, declaradamente inspirada em Platão que, em milênios atrás, disse que o amor existe apenas na cabeça de quem ama e não nas qualidades de quem é amado. Na obra, McCullers transforma a observação platônica numa afirmação ainda mais amarga: Quem é amado é incapaz de retribuir o amor e tende a desprezar quem o ama.

A pessoa que ama, tem que libertar a pessoa amada, pois só assim ambas poderão ter paz e, quando este momento chega, poucas palavras servem para o propósito e necessariamente devem ser ditas.

O Filho da Viúva

* Baseado em textos já publicados de Carmen Vasconcelos e em resenha literária de Eliana Cardoso publicada no Jornal Valor Econômico sobre o tema.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

INSISTO EM CULTIVAR SUA PRESENÇA MESMO SEM VOÇÊ SABER

Em uma data remota, jurei na forma de costume que nunca mais olhava para traz e, naquela ocasião, tomado por uma profunda angustia, não poderia ter agido de outra forma. Além da angustia, me foi recorrente a sabedoria das massas de que não se deve olhar para trás de jeito nenhum, pois se assim o fizesse, poderia sofrer os efeitos eternos desta dita angustia.

Por um certo tempo, deixei um certo capítulo da minha vida adormecido, porém nunca esquecido, pois o passado nunca esta definitivamente concluído e vive agindo sem que o saibamos. Há momentos em que desaparece, como se só importasse o cotidiano atribulado, mas logo reaparece como uma sombra que se projeta sobre o presente e nós o interpretamos continuamente e temos que decifrá-lo repetidas vezes para restituir coerência e entendermos o ocorrido e seus efeitos.

 Então, se jurei nunca mais olhar para traz, o que fazem estas lembranças no meu presente? Nestes casos, a lembrança seria o inverso do juramento ou apenas simples reflexo da saudade e ambos, a saudade e a lembrança,  diretamente relacionadas a vontade ? 

Pois bem, de todos os atributos da alma, a lembrança e a saudade são as que mais tocam o ser humano. A saudade traz as lembranças de quem quer que seja logo ao amanhecer, quando o gelo do coração acorda as pessoas que ficam pensando em algo quando tomam banho  e se vestem e tais pensamentos as acompanham no decorrer do dia, toda hora, adormecidas ou acordadas, nos momentos mais sublimes e nos mais abjetos.

Tenho boas lembranças e saudades do passado, o que findou por me libertar da angustia, porque não era possível que esse mal me dominasse. Se as lembranças, e a saudade dela resultante são boas, não há de se falar em angustia. Sem angustia, se olha apenas para frente, não se olha para traz.

O Filho da Viúva
 *Baseado em fragmentos de textos anteriores; de textos de Carmen Vasconcelos; no relato RAKUDIANAI de Pérsio Arida, publicado na Revista Piauí, edição 55, de abril de 2011; e nos Atos dos Apóstolos (2,14.22-33)

terça-feira, 15 de março de 2011

Moacir se foi numa madrugada

Moacir se foi numa madrugada
Ignácio de Loyola Brandão
Eles partem. Vão embora confirmando a sensação de que a vida é uma coleção de perdas. Está certo que permanecem, pois deixam seus livros, portanto estaremos com eles até o dia em que também iremos. Mas gostamos deles nesta vida. Dos encontros, conversas, telefonemas, e-mails, viagens, jantares, visitas, feiras de livros, com suas graças e manias, ambições e sonhos, sucessos e fracassos, amores e desilusões, brigas e dissensões.
Escritores de minha geração, ou mais velhos, ou mais novos, todos próximos, a quem nos ligamos pela amizade e pelos livros. Partem. Um dia chega a notícia do carro de Osvaldo França Júnior despencando num despenhadeiro nas estradas de Minas. Outro foi João Antonio, tendo seu corpo descoberto em decomposição, morto há muitos dias em total isolamento. Vivia sozinho, nunca vi solidão maior. Hilda Hilst morreu aos poucos em sua chácara de Campinas, onde seguia ansiosa o relógio esperando chegar a hora em que o médico a tinha autorizado a beber um copo e sonhando com seus livros sendo vendidos, bem vendidos. Roberto Drummond estava tão apavorado com o coração que se recusava a ir ao cardiologista. Morreu na véspera do jogo do Brasil com a Inglaterra. Juarez Barroso, cearense, que esteve ao meu lado na famosa noite de 1975 no Teatro Casa Grande, Rio de Janeiro, quando se enfrentou a censura militar, partiu muito novo, devido a um aneurisma. Wander Pirolli, um dos mais modernos autores infantis, revolucionário com seu O Menino e o Pinto do Menino, teve um ataque cardíaco. Dorian Jorge Freire, rio-grandense do norte, de poucos livros e muitas crônicas, sujeito importante em minha vida, ao me orientar no jornalismo, nos últimos momentos, lá em Mossoró, escreveu seus textos com um único dedo, o indicador, o resto paralisado. O mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke, fantástico, isolado em Corumbá, nunca teve a glória alta que merecia, melhor, muito melhor que dezenas de autores midiáticos. Também se foram Josué Guimarães, Ganymedes José, Torquato Neto, Maura Lopes Cançado, Osman Lins, Mora Fuentes, Julieta Godoy Ladeira, Marcos Rey, Fausto Wolf, Carlinhos de Oliveira, Elias José, Caio Fernando Abreu, Roberto Piva, Massao Ono. Sem esquecer Ricardo Ramos, dos melhores companheiro de viagens, cheio de humor, um aglutinador cuja obra precisa ser recuperada, contista que honrava o pai, Graciliano. E Ray-Gude Mertin, tradutora e agente, doce figura, brava mulher.
Saíram, muitos nem tiveram tempo de dizer adeus, até já, até breve. Então, chegou a vez de Moacyr Scliar, o gaúcho. Poucas vezes vi a morte de um escritor repercutir tanto, tão intensamente. Já se passaram duas semanas e continuo a ler na imprensa de todo o Brasil artigos dizendo adeus. Raras vezes vi um carinho e uma tristeza tão grandes em relação a um autor, num meio em que há (veladamente) exclusões, ciúme, alguma inveja, fofocas. Parece loucura, mas nunca vi ninguém alfinetar Moacyr. E olhem que foi autor sempre elogiado pela crítica, membro da ABL, para a qual foi eleito por unanimidade, viajando mundo, traduzido, vendido, dominando auditórios, um médico culto e informado. Meu Deus, que prato!
Moacyr não bebia; um espanto. Nada, de nada. Por não gostar conseguia escrever, limpo, clean, como se diz nos filmes americanos. Não que nós todos somos borrachos, longe disso! Moacyr escreveu, porque tinha o que escrever, sempre foi cheio de histórias, trouxe para a sua literatura os temas e o humor judaicos, recolhia o País em torno dele, em alguns momentos aproximou-se de Jorge Luis Borges. Foi cronista de jornal, da revista Seleções, redigia ensaios, escrevia livros, viajava. Há quem diga que ele não dormia. Judith, sua mulher de toda uma vida, ri, nega, conta que ele escrevia o tempo inteiro, até no avião. Homem disciplinado, controlava o tempo. Foi o que Judith revelou a Guiomar de Grammont, organizadora do Fórum das Letras de Ouro Preto, que escreveu neste jornal, domingo passado, belíssima crônica, dizendo o que todos gostaríamos de ter dito. Emocionante memorabilia. Ali está o jeito simples de Scliar, sua não afetação, o homem tranquilo, preocupado com os outros, sua maneira gaúcha de falar, o tu sempre presente, seus encontros com leitores, estudantes e iniciantes.
O homem que nunca contava sobre o que estava escrevendo. A não ser talvez para os íntimos. Não me lembro de ter lido notícias sobre no que estava trabalhando. Quando a notícia chegava, ele já tinha terminado. Era dos poucos escritores brasileiros que lia livros de outros companheiros, sabia o que estava se passando, citava nomes em entrevistas (coisa rara). Participei dos entrevistadores do Roda Viva da TV Cultura, ano passado, quando ele estava no centro da conversa. Depois nos encontramos no Palácio do Governo, quando recebemos a Comenda da Ordem do Ipiranga. Não podia saber que estávamos nos despedindo. No coquetel, quando levantei a taça de Prosecco e ele ergueu o copo de suco, brindamos pela última vez na vida.
Quando fui a Porto Alegre no dia 20 de janeiro, ele já estava na UTI e tinha sofrido uma cirurgia seguida de um AVC. Estava sedado, assim permaneceu. Num sábado, final do dia, falei com Judith e ela se abriu, dolorida: "Moacyr deve partir entre agora e amanhã". Na madrugada, Scliar se foi. Fará falta!

sábado, 19 de fevereiro de 2011

CASO VOÇÊ CASE

Caso Você Case

Caso você case
Não escreva a nota
Não destrave a porta
Não esteja morta
Não estrague a horta
Faca que não corta
Mulher semi-morta
Sem cara, sem fala, sem bala, sem hora, sem ala-á (bis)
É necessário tudo, mudo, surdo, absurdo
É necessário nada, fada, fanada, nada em fá
É necessário nada, tudo, mudo, surdo, absurdo
Nada em fá-fazer
Caso você case
Não escreva a nota no jornal
Não destrave a porta do quintal
Não esteja morta
Não estrague a horta
Faca que não corta
Mulher semi-morta
Sem cara, sem fala, sem bala, sem hora, sem ala-á (bis)
É necessário tudo, mudo, surdo, absurdo
É necessário nada, fada, fanada, nada em fá
É necessário nada, tudo, mudo, surdo, absurdo
Nada em fá-fazer
Caso você case
Não escreva a nota musical
Não destrave a porta do hospital
Não esteja morta
Não estrague a horta.