DORINE
Herdei
da reclusão coisas especiais, posso citar a música, textos e
filmes. Acredito que passei a vida curtindo isso, exceto por um
pequeno período bem retratando
neste espaço, só que agora quero mudar o foco para outro tema,
todavia fiquei preso a um pequeno texto do filósofo André Gortz,
cuja referência me chegou meio por acaso.
Gorz
só não falou de amor na sua obra "pois é impossível explicar
filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada
pessoa, excluindo todas as outras". Acabou deixando o tema para
o fim, para a "Carta a D.", publicada em 2006, na qual ele
relata sua história ao lado de Dorine, a única mulher que poderia
ter amado. Juntos, eles se suicidaram no dia 22 de setembro de 2007,
quando a vida se tornou insustentável para ela, que sofria de uma
aracnoidite resultante do lipiodol injetado na operação de uma
hérnia de disco.
Durante
anos, Dorine sofreu de terríveis dores, não conseguia deitar de
tanto que a cabeça a fazia sofrer, passava as noites de pé ou
sentada numa poltrona. "Eu queria acreditar que nós tínhamos
tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição",
afirmou Gorz, que não desejava sobreviver à sua morte. Mataram-se
juntos porque, depois de 60 anos de relacionamento, não sabiam como
existir sem o outro.
Antes
de partir, ele quis deixar para a posteridade o sentimento que o
guiou em cada gesto seu, cada livro, cada teoria. Quis falar
abertamente da mulher sem a qual não teria feito nada do que fez.
Se, ao longo de uma carreira tão importante e reconhecida Gorz nunca
abordou o amor, foi porque nele "estamos aquém e além da
filosofia". Era preciso então se aproximar de uma narrativa
mais íntima - e também mais literária - para fazê-lo emergir no
papel.
A
certa altura, na carta, ele diz que amar e ser correspondido, estar
completamente apaixonado "era aparentemente banal demais, e
privado demais, 'comum' demais: não era uma matéria apropriada para
me fazer atingir o universal". Para falar de algo tão pessoal,
a carta lhe pareceu a escrita possível. E para tornar universal essa
intimidade, para eternizar a mulher amada, publicá-la era o gesto
certo. O mesmo gesto que ele afirma ter mudado a sua vida em 1958 com
a publicação de "Le Traître", que lhe conferiu um lugar
no mundo. A "Carta a D.", 50 anos depois, daria realidade
ao seu amor.
Às
vezes, quanto mais pessoal, mais universal. O que ele não conseguia
formular com teorias formulou com a própria história, desde o dia
em que se conheceram - e ele não imaginava que aquela mulher linda e
da alta sociedade fosse se interessar por um judeu austríaco sem um
tostão até os anos passados no campo. Em diversas passagens, afirma
que Dorine era mais madura do que ele, que ia se desenvolvendo sem
"essas próteses psíquicas que são as doutrinas teóricas e os
sistemas de pensamento", enquanto ele precisava disso para se
situar no mundo intelectual. O filósofo precisou percorrer um longo
caminho para chegar ao mais essencial e, finalmente, poder falar de
amor. Do amor deles.
Lembrei-me
de Kafka e suas cartas a Felícia enquanto lia o texto de André
Gorz. Kafka quase não mencionava o amor em suas narrativas
ficcionais e terminou por deixar esse assunto "banal" para
a correspondência. Fiquei me perguntando se não fala de amor quem
ama pouco ou quem ama demais? Por que excluir da obra principal,
canônica, e deixar para a obra considerada marginal, já que íntima,
esse sentimento que nenhuma filosofia explica?
Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro "Kafka: Por Uma Literatura Menor", concebem as cartas desse escritor como uma espécie de pacto diabólico. Kafka se apaixona por uma mulher que viu apenas uma única vez e, sem poder reencontrá-la, escreve-lhe uma tonelada de cartas. Nesse sentido, Felícia seria mais uma cúmplice da escrita do que uma destinatária. Eis o pacto diabólico: exigir que ela lhe escreva duas vezes por dia, para justificar as respostas. O encontro constantemente adiado permite a máquina de escrita. O amor não existe como ato consumado e sim como motor epistolar. Kafka tem horror à ideia de casamento, mas, vampiro, suga de Felícia o que precisa para manter o fluxo das cartas.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro "Kafka: Por Uma Literatura Menor", concebem as cartas desse escritor como uma espécie de pacto diabólico. Kafka se apaixona por uma mulher que viu apenas uma única vez e, sem poder reencontrá-la, escreve-lhe uma tonelada de cartas. Nesse sentido, Felícia seria mais uma cúmplice da escrita do que uma destinatária. Eis o pacto diabólico: exigir que ela lhe escreva duas vezes por dia, para justificar as respostas. O encontro constantemente adiado permite a máquina de escrita. O amor não existe como ato consumado e sim como motor epistolar. Kafka tem horror à ideia de casamento, mas, vampiro, suga de Felícia o que precisa para manter o fluxo das cartas.
Com
Gorz acontece o oposto, embora ele também despreze a conjugalidade e
evite a todo custo assumir um compromisso civil que, segundo ele,
nada tem a ver com aquilo que une um homem e uma mulher. No entanto,
Dorine deixa claro: sem o pacto para a vida inteira, prefere
deixá-lo. Dá-lhe um mês para pensar, e ele percebe que se "fosse
incapaz de amá-la de verdade, nunca poderia amar ninguém". Ela
parte em viagem logo depois, e ele lhe escreve todos os dias.
Não
são essas as cartas que lemos, mas certamente foram essas que
asseguraram em D. a vontade de levar adiante aquela história. Ao
contrário de Kafka, Gorz se aproxima fisicamente da amada. Enquanto
o primeiro só viveu o amor de forma epistolar, o segundo viveu um
amor realizado. Em outras palavras, o amor, em Kafka, só existia na
forma de uma correspondência. Em Gorz, a carta surge depois, apenas
para mostrar ao mundo que ele não seria quem era sem Dorine. Um
vampiro, também, mas um vampiro que compartilhou a vida com seu
único amor de verdade.
De
forma carinhosa, o remetente vai lembrando à destinatária os
primeiros momentos juntos, quando D. tinha acabado de chegar da
Inglaterra. O que o cativava era o fato de ela pertencer a outro
mundo. Um mundo que o encantava, no qual podia entrar "sem
obrigações nem pertencimento". "Com você, eu estava em
outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo",
afirma. Sem dúvida, a alteridade está no cerne desse amor. Com D.,
A. falava inglês, construía "um mundo protegido e protetor".
Ele queria saber tudo dela, sua infância perturbada, sua solidão,
seus medos. Ela lhe dava a possibilidade de escapar de si mesmo e se
instalar num outro lugar. "Com você, eu podia deixar de férias
a minha realidade", anuncia o escritor. Mas não só. Com
Dorine, a realidade de André Gorz se tornava mais leve, sobretudo
nos momentos de penúria dos anos 50. Ele encontraria conforto toda
vez que ela repetisse: sua vida é escrever; então escreva.
Mais
do que cumplicidade, mais do que comunhão, a relação de A. e D.
parece ter sido uma verdadeira experiência de alteridade. Tão
forte, tão potente, que ele só conseguiu abordá-la aos 83 anos,
quando ela, prestes a fazer 82, estava 6 cm mais baixa, pesava 45 kg
e continuava "bela, graciosa, desejável". Atormentado pela
chegada do fim, ele se põe a pensar por que ela está tão pouco
presente no que escreveu, se essa união é a coisa mais importante
da sua vida? Por que passou uma imagem falsa dela em "Le
Traître"? Por que a apresentou como uma coitadinha? É para
responder a essas perguntas que ele decide elaborar a carta. "Preciso
reconstruir a história do nosso amor para apreender todo o seu
significado", diz.
Finalmente,
em seu último,e belíssimo texto, conseguiu falar do que sempre lhe
parecera inefável. Nomeá-lo, explicitá-lo, um risco que André
Gorz evitou a todo custo até o instante final, como se não pudesse
falar de amor e permanecer vivo. Diante da morte iminente, a carta
seria a derradeira possibilidade de prorrogação, a única forma de
anunciar que, "se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer
passá-la juntos".
Tatiana Salem
Levy escreve, quinzenalmente no Jornal Valor Econômico