sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A ternura, até então desconhecida, de Marina Silva ao comentar a despedida de Rubem Alves da Folha de São Paulo



ALÉM DO COTIDIANO
 


A partir de agora, os leitores de Rubem Alves não terão mais os litorais inundados pelas intensas ondas de suas ideias, avolumadas pelos ventos de sua alma de poeta.

Sua afirmação "minha alma é movida pelas ausências" revela em carregadas tintas o que quase sempre fazemos questão de velar: que nos movemos mais pelo que nos falta do que pelo que possuímos.

Só os que se percebem incompletos autorizam-se a parar antes de serem parados, a mudar antes de serem mudados, a revelar suas ausências antes de serem delatados pelas interrogações da presença.

Há muitos anos guardo, do educador Rubem Alves, a lição da incompletude humana da qual só o amor nos redime. E educação é um outro nome da palavra amor.

Do filósofo, esforcei-me para reter o pensamento amplo que descortina a história da humanidade, buscando superar a era da informação em busca de uma era da sabedoria. Do cronista, saboreei o café cotidiano, capaz de dar gosto ao dia e à semana.

Mas foi o poeta Rubem Alves que encontrei, mais uma vez, em sua despedida dessas páginas de jornal.

É a ele que respondo, nessa incompleta homenagem com as palavras que extraí -nas linhas e entre elas- de seu texto denso e profundo:


Disseste tudo ao dizer:
Quando a ausência de mim
Fizer presença em meu ser,
Visitarei a mim mesmo,
Para não me afastar de você.
Quando o peso do dever
Em mim soterrar a alma
Entre os escombros da vida,
Quero flutuar qual pluma
Na leve brisa da calma.

Quando o dizer tiver o poder
De revelar o que não quero,
Paro a pluma, guardo a voz,
Me rebelo no silêncio
Para me manter sincero.

Antes da noção do certo
Se revelar um engano,
Saio do cotidiano:
Adentro em outras rotinas,
Noutros mares vou pescar.

Não quero porto seguro,
Só âncora, vela e mar.
Âncora para ser meu porto,

Vela para me levar,
Mar para, no litoral,
As minhas ondas quebra

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Rubem Alves se despede dos seus leitores cativos da Folha de Sâo Paulo


DESPEDIDA


Minha alma é movida pelas ausências;
mas, nos jornais, não há lugar para ressurreições”




ESSA CRÔNICA é uma despedida. Resolvi, por decisão própria, parar de escrever em Cotidiano.

Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria Laselva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição. Nos aeroportos, vou sempre visitar a Laselva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Saio sempre desapontado.

O outro sonho dos escritores é ter seus textos publicados num jornal importante: ser lido por milhares de leitores. O que significa reconhecimento duplo: do jornal que os publica e dos leitores. Isso faz muito bem para o ego. Todo escritor tem uma pitada de narcisismo.


Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas..." E ele se pergunta se "não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas..."


Respondo: Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas, agora, meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar.

A obrigação: é isso o que pesa. Quereria ser capaz de viver um poeminha do Fernando Pessoa: "Ah, a frescura na face de não cumprir um dever... Que refúgio o não se poder ter confiança em nós..." Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto -pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto-que já disse tudo. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever.

Não é qualquer coisa que se pode publicar num jornal. O próprio nome está dizendo: "jornal", do latim "diurnalis"; de "dies", dia, diurno; o que acontece no dia; diário. O tempo dos jornais é o hoje, as presenças. Mas minha alma é movida pelas ausências: nos jornais, não há lugar para ressurreições.

Acho que aconteceu comigo coisa parecida com o que aconteceu com a Cecília Meireles. Escrevendo sobre ela, Drummond falou o seguinte: "Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito 'uma certa ausência do mundo'"?

Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e os poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com "uma ausência que se demorava". E Rilke se perguntava: "Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?" O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo.

O místico Ângelus Silésius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundos diferentes: "Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem". Jornais são seres do tempo.


Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.

E é por isso vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente...

Rubem Alves
(Texto de despedida de Rubem Alves, publicado na Seção Cotidiano da folha de São Paulo, Edição de 01 de novembro de 2011, uma terça feira)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

ARQUITETURA DE DESPEDIDA

Com a lembrança, encerramos toda a nostalgia que pautou a maioria das publicações do Blog.  Em breve, voltaremos com novos textos, outros temas.

Bachelard observou que “a lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental das lembranças. Senão vejamos: Que sol ou que vento fazia naquele dia de novembro em que ela foi embora ?

Compreendi as palavras de Bachelard ao me lembrar daquele dia terrível, que não pode ser esquecido. Era fim de tarde, quando a luz do dia que se ia  misturava-se com o escuro da noite que chegava e tudo ficou indefinido. A indefinição ficava mais indefinida ainda pela chuva fina que começava a cair. Foi então que aconteceu: uma ligação e estava resolvido. Fiquei inconsolável e assustado, pois não tinha lembrança de qualquer momento parecido com aquele.  

De verdade, minha doce menina, a cada dia que passa renova em mim o orgulho de ter lhe conquistado e de ter lhe servido e não existe nada neste mundo que possa romper este orgulho, daí a lembrança que teima em ficar, mas, a cada dia vai ficando mais distante.

O passado não existe mais, aliás, remanesce apenas as lembranças que, como no filme de Kar Wai Wong, AMOR A FLOR DA PELE, podem apenas ser vistas, nunca tocadas.

Sempre tive a fé, a caridade e a esperança no meu coração, e estas virtudes me ajudou a suportar a miséria, o sofrimento e o meu fracasso.