SEPARAÇÕES
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Ele era engenheiro,
gostava de filmes de ação e corria na esteira três vezes por
semana. Encarava o sexo como uma necessidade fisiológica, uma
exigência corporal que surgia mais intensa quanto mais descansado
estivesse: ao acordar. À noite, exausto, só queria tomar uma
cerveja e dormir.
Ela era pintora,
detestava "filme de carro explodindo" e praticava hatha
yoga. O sexo, para ela, era "cosa mentale": o desejo ia
crescendo durante o dia, a fantasia se desenhando nas cochias do
pensamento e só ao se deitar na cama, antes de dormir, começava o
espetáculo.
Quando se conheceram,
não atinaram para o problema de fuso horário --no jet lag da
paixão, toda hora era hora--, mas, assim que o fogo abaixou e o sexo
teve de encontrar seu escaninho no armário da rotina, as diferenças
apareceram.
Separaram-se faz um
mês. Ironicamente, ele sente mais falta dela à noite, enquanto toma
sua cerveja e espera o sono; ela sofre mais ao acordar, só, de
manhãzinha.
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Da primeira vez que ela
foi à casa dele, viu na cama desarrumada, nos vinis espalhados pelo
chão e na geladeira vazia --meia garrafa de vinho e três sachês de
ketchup (vencidos)-- uma postura rock'n'roll, um desprendimento
libertador, uma superioridade quase beática.
Da primeira vez que ele
foi à casa dela, viu nos tupperwares etiquetados, nas flores da
jardineira e no mural do escritório sua possível salvação: sonhou
com um futuro de refeições balanceadas, vinis em ordem alfabética
e contas no débito automático.
Por seis meses, ela
resistiu às toalhas molhadas na cama, aos discos espalhados pela
casa e às caixas de pizza no sofá; "A única coisa que eu
pedia era pra ele botar o telefone na base. Se você ama mesmo uma
pessoa, é capaz de fazer esse mínimo esforço, não é?".
Separaram-se faz uma semana. Ontem de madrugada, a caminho do
banheiro, ela viu a luzinha verde da bateria, na base do sem fio, e
caiu no choro.
⁻
Eles gostavam dos
mesmos filmes, dos mesmos livros, das mesmas bandas, dos mesmos
pratos nos mesmos restaurantes, riam das mesmas piadas, queriam
conhecer os mesmos países e ter um filho chamado Frederico. Depois
de cinco anos, contudo, se cansaram daquela mesmice. Ela disse que
estava pensando em se separar, ele disse que vinha pensando o mesmo.
Ontem, ao partir, ela o fez prometer que jamais teria um filho
chamado Frederico. Ele prometeu --e pediu o mesmo.
-
Por dez anos, ele foi
absolutamente fiel. Não transou, não beijou nem flertou com nenhuma
outra mulher. Nos últimos meses, a retidão começou a pesar em seus
ombros. Anda por aí olhando bundas com a voracidade de um remador
das galés, deu pra implicar com pequenos atrasos da esposa e pra
discordar de seus comentários durante o jornal.
Já ela, nesses dez
anos, não foi absolutamente fiel. Transou com um colega de trabalho
e com um ex-namorado de adolescência, que encontrou por acaso em
Salvador. Nada sério, só desejo: ela tem certeza absoluta de estar
ao lado do homem que ama e jamais cogitou trocá-lo por alguém.
Agora, ele chega na
sala, senta ao lado dela, olha pra parede e diz que precisam
conversar.
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Antônio Prata (Folha de São Paulo, 17/11/2013, Cotidiano C2)