terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O CIÚME NOSSO DE CADA DIA

Carmen Vasconcelos

Embora seja noite, o ciúme não dorme, rouba o sono, é um fantasma sólido que faz durar a hora gótica. Embrulha o estômago, dá calafrios, provoca tonturas. O ciúme fermenta engasgos, tira as palavras do prumo, dança sobre palavras dobradas. O ciúme infirma, faz do chão pântano. É ponte que rui com o peso de uma boiada estourada; é um rio descontrolado, em cujas cabeceiras se derramaram montanhas de nuvens. O ciúme vive de convulsões e impulsos. Só entende a pantomima dos espasmos. Súbito e surpreendente, bebe lágrimas e suor, e come soluços.


O ciúme (no dizer dos ajuizados, essa monumental falta de juízo) costuma atacar sem aviso. Anda nos passos do amor, mas não porque o seguisse. Antecede o amor e continua a existir depois dele (Proust), aviva-o. Às vezes cria o amor, confunde-se com o amor, a ponto de tornarem-se uma mistura indistinguível. Não é politicamente correto falar essas coisas, mas amor e política também não são uma mistura muito sincera. Amor e ciúme o são, por muito que se negue.


Porque às vezes se retrai, porque às vezes fica quieto, não se pense que o ciúme sucumbe às boas maneiras e aos conceitos bem comportados. Antes, deve estar traçando estratégias, criando maneiras de cercar o ser amado. O ciúme, ogro faminto, está sempre rondando. É cuidado? Só se for com a pessoa mesma que o sente. É prova de alerta, não de amor. É proteção? de alguém que o amante sente seu. E olhem que ninguém pode mesmo, de verdade, pertencer a outra pessoa, e se o amor valida essa posse, tal validação sempre padecerá de precariedade.


O ciúme sabe disso, conhece as vicissitudes dos sentimentos. Por isso, tem medo e taquicardia, e por isso desperta no ser amante o seu lado menos louvável, o que guarda aqueles sentimentos que ninguém quer sentir e as ações que ninguém quer praticar: superstição, egoísmo, inveja, rabugice, falta de generosidade, descaso com o resto do mundo, porque no mundo só existem dois.

E quem pode atirar a primeira pedra naquele ciumento? Com muita sinceridade, com muita sinceridade mesmo, quem nunca desejou que um raio, desses que, com essas chuvas de agora, põem nos olhos a luz aberta da noite, fulminasse um eventual rival, como um dia fez um raio com Justine, a boa moça que o Marquês de Sade não perdoaria? Quem vai atirar a primeira pedra no ciumento?

Todo ciúme decorre de uma falta de juízo, mas, e o amor? Acaso quem ama está em seu perfeito juízo? Não é o amor aquilo que desata os nós das censuras internas? “Tu desatas ainda os nós internos, com teu canto”, disse Montale ao mar, diz o ser amante ao ser amado, diz o amor ao ciúme. O amor ata, diz Almodóvar.


Não se pode negar o ciúme, mas quando ele não é domado, acaba sufocando o amor. Doma-se o ciúme? E o que é que não se doma, no espírito? Até o amor pode ser domado, até mesmo a fé. Doma-se o ciúme, como se doma um cavalo alado. É difícil, porque, além de chucro, o cavalo ainda tem asas. Mas há um tempo para tudo debaixo do sol (Eclesiastes) e o ciúme se doma sim, usando os seus próprios estratagemas, os seus mecanismos de identificação.

Porque o ciúme se reconhece nos reflexos, nos revérberos. Ele se revela nas ações mais cotidianas, nas mais banais.


Tente. Persevere. Você acabará por domá-lo. Só não cometa o erro fatal de fingir que ele não existe, desdenhar dele. Porque se você fizer isso, quando menos esperar, o ogro faminto vai engolir você.

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