quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O RABINO DOS BACANAS

Entrevista com o rabino Nilton Bonder
O que é cabala?
A raiz da palavra significa “receber” e está relacionada à maneira como os ensinamentos dessa tradição eram transmitidos do mestre para seu discípulo. Por ser algo refinado e, às vezes, de difícil compreensão, necessitava desse tipo de tutoria. Hoje, podemos definir como o estudo da interpretação. Em outras palavras: se você não consegue ler o que dizem as letrinhas miúdas, os sinais da vida, em algum momento será enganada. A capacidade de decifrá-los é o sentido da cabala.

Por que o assunto ganhou uma conotação tão misteriosa?
Quando você lê os vários planos de um texto e seus diversos contextos, enxerga mais longe. Para quem não conhece essa capacidade, parece mágica. Mas nada mais é do que olhar a vida em alta definição, em HD.

Qual a função de um rabino?
É como atender aos chamados para o 190. O rabino é uma espécie de consultor, procurado pela comunidade para ajudar nas crises. Mas há também o lado alegre, o das festas, como o bar mitzvah (que celebra a maioridade religiosa judaica, aos 13 anos). Nesses casos, sou festeiro, do tipo que precisa ser puxado fora do palco para parar de cantar.

O senhor se considera um religioso moderno?
Tenho um grande respeito pela tradição. Ao mesmo tempo, preciso ser autêntico. Ou seja: sou judeu, rabino e brasileiro. Minhas raízes estão aqui. Fui criado no Rio de Janeiro. Se morasse nos Alpes, por exemplo, esquiaria o tempo todo. Aqui, vou à praia. Dessa autenticidade vem a sensação de modernidade. Quem faz parte da comunidade pode achar que estico demais a corda. Já quem está do lado de fora tende a acreditar que faço parte de um grupo fechado e restrito. Vivo as duas contradições com seus ônus e bônus. Algumas vezes, tenho de pedir socorro. Tiro férias, converso com outro rabino.

Dinheiro, comida e inveja: por que escolheu esses temas para seus três primeiros livros cabalísticos?
A trilogia surgiu porque no Talmude (um dos livros básicos da religião judaica) é dito que uma pessoa pode se conhecer por meio de seu copo, de seu bolso e de sua ira. Esses são os três elementos da autodescoberta. A ira acabou virando inveja porque ela é derivada da raiva que se transformou em ódio e rixa.

Como lidar com esse sentimento no dia a dia?

É preciso parar de controlar a vida do outro. Se ele, ou ela, se dá bem, você fica mal; se vai mal, você fica bem. Você está com seus prazeres e sofrimentos engatados no outro. A maneira mais eficiente de lidar com isso é realizar o desengate. Não importa se você inveja ou é invejada: enquanto mantiver alguém como seu arqui-inimigo e encará-lo como poderoso, permanecerá conectada e suscetível.

Qual a maneira mais sábia de administrar o dinheiro?
Nosso patrimônio é a soma daquilo que escolhemos ter e do que decidimos não ter. Essa é a base mais importante da economia pessoal. A fim de possuir certas
coisas, você terá de trabalhar mais, talvez até estragar a saúde ou suas relações, tudo porque precisa comprar. Viver bem significa realizar boas escolhas em prol da qualidade da existência. Infelizmente, as mulheres são muito manipuladas com relação ao consumo. Por terem uma ligação forte com a estética, são facilmente fisgadas por falsas necessidades. Não existe nada de errado em buscar o que é bom e belo. Mas será que você precisa mesmo de tantos pares de sapatos? Com tantas decisões a tomar, muitas mulheres sofrem por se sentir sobrecarregadas... Se isso acontece, é porque talvez se esteja abarcando mais do que se deveria. Ao querer decidir sobre minúcias o tempo todo, você abre flancos. Criar alguns filtros é fundamental

Como encara a questão do erotismo feminino?
Encravado no texto bíblico, existe o “Cântico dos Cânticos”, uma passagem muitíssimo erótica. Sua função é nos dizer que uma das maneiras de louvar a vida é ser grato ao Criador pela existência de uma dimensão sensual. Esquecê-la é quase uma rejeição à vida. O sexo confere colorido a ela, assim como a comida e outros prazeres. Não é o caso de perder-se em sua procura única e exclusiva; por outro lado, deixar de usufruí-lo é pecado. Eu mesmo, como escritor, busco esses limites, às vezes esquecidos dentro da tradição.

Como a questão da traição é vista pela óptica cabalística?
A tradição pede que você não abra mão de algo precioso por outra coisa destituída de valor. A palavra adultério vem de adulterar, que significa misturar o que possui qualidade com algo que não tem. Quando o dono de um posto adultera a gasolina, por exemplo, faz exatamente isso. Se você põe em risco o casamento ouqualquer outra coisa de valor real para si, certamente acabará infeliz. Por outro lado, é preciso fazer uma análise interior para distinguir quais valores realmente são seus.

Que relação existe entre a ciência e a cabala?
A ciência é muito mais antropocêntrica – faz do ser humano o centro do Universo e considera o homem um fim em si mesmo. Mas somos um meio, não um fim. Gosto de usar a metáfora de que a galinha acha que o mundo foi feito para ela existir. Mas ela é só o meio entre um ovo e outro. Muita gente se perde nesse debate – inclusive as mulheres, quando abrem mão da maternidade alegando não querer estragar o corpo ou perder tempo com a educação de um filho.

Você escreveu um livro chamado O Crime Descompensa. O que significa?
No texto, explico que a impunidade não existe. Todo crime descompensa o indivíduo que sabe estar infringindo um valor, uma lei que ele conhece. Uma pessoa que se descompensa por muito tempo paga um preço alto em sua qualidade de vida. Passa a desconfiar de Deus e do mundo, perde sua inocência e se autodestrói. O ideal para a humanidade é formar e educar a fim de que as pessoas prezem valores.

O que leva uma mulher a se descompensar?
As mulheres entraram para o mercado de trabalho e acabaram, muitas vezes, assumindo características masculinas. Talvez as feministas fiquem bravas comigo, masaquelas que embarcam nessa acabarão descompensadas em algum momento. É necessário retornar ao modelo feminino, aquele em que não se quer conquistar países nem ser o número 1 da empresa, muito menos receber todas as promoções e ficar rico. Fama e sucesso são relativos. Mesmo os nomes mais famosos da história são como areia no deserto. A vida não se constrói pelo número de conquistas.

Que resposta daria a uma mulher dividida entre carreira e maternidade?
Entre as diversas vozes que gritam vá ganhar dinheiro”, “vá fazer carreira”, “vá ser mãe”, o segredo está em ouvir aquela que se reconheça como a mais autêntica. Preste muita atenção nos seus valores verdadeiros para não adulterá-los e perder a sua qualidade original.

A tradição judaica valoriza a mulher dentro da cozinha. Por quê?
Porque a cozinha é o lugar mais sagrado não apenas da casa, mas do mundo. É onde os afetos mais importantes de um lar se concentram e os laços se formam. Toda cozinha que tem afeto tem grande impacto sobre os moradores da casa. É aí que nascem os vínculos mais importantes.

Qual o papel dos amigos em nossa história?
Um só amigo verdadeiro é muito mais valioso do que ter 3 milhões de seguidores no Twitter. Se você tiver alguém a quem faça diferença, ocupará um lugar melhor
no Universo do que se tiver mais de mil nomes sem vínculos reais no seu Facebook ou no seu Orkut.

Por que é tão importante o contato com o outro?
Às vezes, nos achamos tolerantes, quando na verdade não somos. Por ser diferente de mim, não posso ter a expectativa de que o outro tenha a mesma visão,
a mesma expectativa. Não acolhero outro significa tentar convencêlo a ser igual a você. Mas dessa maneira a vida não seria tão rica.

A Alma Imoral é um de seus livros de maior sucesso. Que tipo de mensagem transmite?
Cada um de nós estabelece uma moral própria. Ela nada mais é do que o apanhado das crenças que servem para proteger nossos interesses. Embora cada moral seja criada com significado, de tempos em tempos é preciso checar se ela não se transformou em uma camisa de força. Ser imoral, então, é realizar um ajuste fino dessas crenças e opiniões para descobrir se não existem coisas importantes do outro lado. A imoralidade da alma é um resgate necessário para oxigenar a vida.

Quando uma mulher precisa romper com a própria moral?
Se está presa a uma falsa segurança, por exemplo, vai precisar repensá-la. Pode ser que esteja em um emprego que não a faça feliz ou num casamento que precisa ser resgatado ou rompido. Talvez você tenha de lidar com o risco, com a imoralidade e com o desconforto se de fato quiser alcançar sua verdadeira qualidade.

Qual seria uma visão cabalística do amor para o século 21?
Os noivos costumam ficar perplexos quando digo em uma celebração de casamento que devemos desejar que o outro ame mais a vida do que a nós mesmos.
Mas apenas quem está erotizado pela vida, não por um homem ou uma mulher, é alguém para estar ao nosso lado. As pessoas têm que se apaixonar pela vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário